domingo, 22 de janeiro de 2012

Lucidez, de Domingos Barroso

Um eu poético que se manifesta ceticamente em relação à vida, às pessoas e aos sentimentos. Já disseram que o cético é aquele que mais tem medo de sofrer. Os desejos do eu (no poema) bem poderiam compor um catecismo dos céticos. No entanto, até mesmo o cético acredita em algo: que existe uma verdade, nem que seja a de que o ceticismo é o caminho, nem que esteja na paz dos chinelos. Poema racional, mas permeado de subjetividades. E uma gota de metafísica (“Sei.../da longa vida que é a morte”). Uma gota num oceano de niilismo. Poema que honra a tradição niilista da poesia.



Lucidez

(Domingos Barroso)



Que ninguém e nada
conspirem a meu favor.

Que o mundo permaneça alheio
e as coisas inalteradas.

Que a montanha não se mova
em minha direção e o mar
não se corte ao meio
por minha causa.

Que as estrelas nasçam e morram
sem mandarem notícias
do corredor escuro
de outras galáxias.

Que o meu bermudão não mostre seus bolsos
nem procurem nas minhas mãos moedas.

Que as minhas botas durmam
sem sonhar com as calçadas.

Que anjos não pensem em mim
nem façam da minha alma
uma aurora.

Que demônios esqueçam
o vazio da minha mente.

Que ninguém e nada
conspirem a meu favor.

Sei muito bem das emboscadas.
Da luz que finda e do grito.
Do olhar cúmplice
e da revolta.

Apartem-se do meu coração os arautos da felicidade.
Esses cães dos próprios ossos e da própria carne.

Sei do descuido, da farsa,
da longa vida que é a morte.

Que ninguém e nada prometam-me
a vida e o seu deleite em outra terra.

Que a paz dos meus chinelos
seja toda a verdade
que vejo -

sem truque,
sem medo.


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

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