sábado, 18 de agosto de 2012

Autorretrato, de Gustavo Felicíssimo


Poema de muitas entrelinhas. Poema em que o eu poético contesta e se afirma. Rimas pinceladas tornam a leitura mais agradável. Belíssima, a primeira estrofe, que apenas inicia um ordenado raciocínio em que o eu poético reconhece sua invisibilidade para, em seguida, afirmar: “sou finito e celebro o fogo/infindável do grande jogo/a nos enlaçar a garganta”. Não seria esse grande jogo a própria poesia? Afinal, há uma voz “sacrossanta que a tudo encanta”. A brevidade quase desconcertante (pois, na leitura, ficamos a pedir mais palavras, mais explicações) da última estrofe vem dessa voz sacrossanta, que, sendo terra, é também “campo fecundo” para grandes e profundas ramificações com a natureza, com a vida e com a própria poesia. A leitura desse poema “força” o leitor a pensar sobre as possibilidades interpretativas que um texto pode nos oferecer. Daqui a um ano, provavelmente o comentário sobre o poema abaixo seria diferente, muito diferente. E, se o texto provoca essa sensação, significa que ele é rico em forma e conteúdo. Poema rico de sendas.


Autorretrato

(Gustavo Felicíssimo)


Sou como o invisível céu
que não vos inspira cuidados,
pois retorno depois das névoas
sobre os campos abandonados;

sou finito e celebro o fogo
infindável do grande jogo

a nos enlaçar a garganta;
creio no vórtice da voz
sacrossanta que a tudo encanta;

trago os haveres desse mundo;
sou terra, sou campo fecundo.

(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema. Este foi publicado no livro Procura e Outros Poemas, de Gustavo Felicíssimo. Editora Mondrongo Livros, 2012.)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Poema Novo, de Sérgio Souza

Poesia, palavras sempre em falta. Não bastam sentimentos, gestos, vozes. Nem mesmo o acelerar do coração seria suficiente para o fazer poético. O poema faz uma breve reflexão sobre esse fazer poético. Primeiro, a sensação de que não há palavras. Segundo, a percepção de que há sempre algo não apreendido no sonho que se esvaiu na realidade. E então “Faltam palavras para se contar um conto/Quando o ponto maior é o descuido/De um instante livre como liberdade”. Todavia, persiste (ou apenas existe) a constatação consoladora de que esse é caminho do fazer poético: “Fazer poesia assim é entrega e busca” e “Que saudade não tem tradução”. Assim, ao ver e não poder tocar, ao sentir e não poder dizer, ao querer e não poder ter, o eu que faz poesia se vê diante de forças que remetem seu olhar para “A beleza, a graça, o querer”. Poema com uma dicção leve, que parte de um tom confessional e se encerra numa constatação reparadora. Fazer poesia sobre poesia continua a ser algo extremamente comum em nosso tempo. Difícil é transformar a angústia que, no poema, não é a angústia da influência do Harold Bloom, mas a angústia inerente ao ato de traduzir, com as palavras “certas”, coisas muitas vezes intraduzíveis , transformar essa calma e desesperada busca num poema que diga algo interessante, algo que provoca a reflexão (com ou sem angústia, a depender do tipo de leitor) já não é tarefa tão fácil. O poema abaixo parece representar bem essa busca bem-sucedida. 


Poema Novo

(Sérgio Souza)


Difícil é para a poesia
Quando faltam palavras
E sobra alegria,
Difícil é para a poesia
Quando os gestos são mais que fonética
E o peito bate sem compasso
Perdido num abraço, num olhar.

Difícil é para a poesia
Quando o sonho é uma realidade
Sonhada com a sinceridade do dia
E a imaginação de uma noite;
Faltam palavras para se contar um conto
Quando o ponto maior é o descuido
De um instante livre como liberdade
Infanto-juvenil ou serenidade senil.

Fazer poesia assim é entrega e busca,
É sentir no espalmar das mãos
O calor interior que invade o cérebro,
Que embarga o sentido,
É constatar com felicidade no coração,
Na prática, longe da gramática
Que saudade não tem tradução,
Pois no encontro dessas realidades estão
A beleza, a graça, o querer.

 (Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)