sábado, 18 de agosto de 2012

Autorretrato, de Gustavo Felicíssimo


Poema de muitas entrelinhas. Poema em que o eu poético contesta e se afirma. Rimas pinceladas tornam a leitura mais agradável. Belíssima, a primeira estrofe, que apenas inicia um ordenado raciocínio em que o eu poético reconhece sua invisibilidade para, em seguida, afirmar: “sou finito e celebro o fogo/infindável do grande jogo/a nos enlaçar a garganta”. Não seria esse grande jogo a própria poesia? Afinal, há uma voz “sacrossanta que a tudo encanta”. A brevidade quase desconcertante (pois, na leitura, ficamos a pedir mais palavras, mais explicações) da última estrofe vem dessa voz sacrossanta, que, sendo terra, é também “campo fecundo” para grandes e profundas ramificações com a natureza, com a vida e com a própria poesia. A leitura desse poema “força” o leitor a pensar sobre as possibilidades interpretativas que um texto pode nos oferecer. Daqui a um ano, provavelmente o comentário sobre o poema abaixo seria diferente, muito diferente. E, se o texto provoca essa sensação, significa que ele é rico em forma e conteúdo. Poema rico de sendas.


Autorretrato

(Gustavo Felicíssimo)


Sou como o invisível céu
que não vos inspira cuidados,
pois retorno depois das névoas
sobre os campos abandonados;

sou finito e celebro o fogo
infindável do grande jogo

a nos enlaçar a garganta;
creio no vórtice da voz
sacrossanta que a tudo encanta;

trago os haveres desse mundo;
sou terra, sou campo fecundo.

(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema. Este foi publicado no livro Procura e Outros Poemas, de Gustavo Felicíssimo. Editora Mondrongo Livros, 2012.)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Poema Novo, de Sérgio Souza

Poesia, palavras sempre em falta. Não bastam sentimentos, gestos, vozes. Nem mesmo o acelerar do coração seria suficiente para o fazer poético. O poema faz uma breve reflexão sobre esse fazer poético. Primeiro, a sensação de que não há palavras. Segundo, a percepção de que há sempre algo não apreendido no sonho que se esvaiu na realidade. E então “Faltam palavras para se contar um conto/Quando o ponto maior é o descuido/De um instante livre como liberdade”. Todavia, persiste (ou apenas existe) a constatação consoladora de que esse é caminho do fazer poético: “Fazer poesia assim é entrega e busca” e “Que saudade não tem tradução”. Assim, ao ver e não poder tocar, ao sentir e não poder dizer, ao querer e não poder ter, o eu que faz poesia se vê diante de forças que remetem seu olhar para “A beleza, a graça, o querer”. Poema com uma dicção leve, que parte de um tom confessional e se encerra numa constatação reparadora. Fazer poesia sobre poesia continua a ser algo extremamente comum em nosso tempo. Difícil é transformar a angústia que, no poema, não é a angústia da influência do Harold Bloom, mas a angústia inerente ao ato de traduzir, com as palavras “certas”, coisas muitas vezes intraduzíveis , transformar essa calma e desesperada busca num poema que diga algo interessante, algo que provoca a reflexão (com ou sem angústia, a depender do tipo de leitor) já não é tarefa tão fácil. O poema abaixo parece representar bem essa busca bem-sucedida. 


Poema Novo

(Sérgio Souza)


Difícil é para a poesia
Quando faltam palavras
E sobra alegria,
Difícil é para a poesia
Quando os gestos são mais que fonética
E o peito bate sem compasso
Perdido num abraço, num olhar.

Difícil é para a poesia
Quando o sonho é uma realidade
Sonhada com a sinceridade do dia
E a imaginação de uma noite;
Faltam palavras para se contar um conto
Quando o ponto maior é o descuido
De um instante livre como liberdade
Infanto-juvenil ou serenidade senil.

Fazer poesia assim é entrega e busca,
É sentir no espalmar das mãos
O calor interior que invade o cérebro,
Que embarga o sentido,
É constatar com felicidade no coração,
Na prática, longe da gramática
Que saudade não tem tradução,
Pois no encontro dessas realidades estão
A beleza, a graça, o querer.

 (Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.) 

sexta-feira, 1 de junho de 2012

O velho Pubi, de Mauro Ulrich


Uma cena poética: um menino que comia balinhas coloridas das mão do avô e que, um dia, fica esperando o avô voltar. E o avô não volta. Daria um belíssimo curta-metragem. Dá até para imaginar o olhar triste do menino, o olhar perdido na estrada de barro no final de uma tarde de pouco sol. Essa cena não existe nas telas, mas existe, em preto e branco, no poema O velho Pubi. Uma cena repleta de imagens trazidas dos baús da infância, onde ficam guardadas para momentos como esse fazer poético. A aparente simplicidade do poema esconde, talvez, a beleza e a riqueza sentimental de imagens como a “concha de suas mãos” e do gosto “de fundo de bolso/de calças”. O contar do dia leva o leitor a refletir sobre a espontaneidade das palavras na infância e sobre a amargura no silêncio do “Nunca mais contar do meu dia”. Maravilha de poema!


O velho Pubi
(Mauro Ulrich )


Meu avô ia na venda
à tardinha
e na volta me trazia
um punhado de balinhas coloridas,
que eu comia com prazer
na concha de suas mãos.


As balas tinham gosto de fumo,
de cachaça
e de fundo de bolso
de calças.


Em troca eu tinha que lhe tirar os sapatos,
contar do meu dia
e manter sempre quente
a água do chimarrão.


Até que teve uma tarde que ele foi na venda
e não mais voltou.
Nunca mais balinhas coloridas.
Nunca mais tirar os sapatos.
Nunca mais contar do meu dia.


A água do chimarrão esfriou.




Obs.: foi solicitada autorização ao autor. No entanto, não houve resposta. Caso o autor tenha alguma objeção à postagem do poema acima neste blog, favor comunicar através do e-mail jberna68@gmail.com.br. De qualquer forma, este blog agradece ao autor a existência do poema.



sexta-feira, 25 de maio de 2012

Aniversário, de Afonso Estebanez


Um primor de poema. Parece uma construção de estrutura e acabamento impecáveis. Ritmo agradável, aqui e acolá uma rima, métrica de redondilha maior. Mas o mais encantador no poema é o tom melancolicamente jocoso com que são expostos os desejos do eu poético nas três primeiras estrofes. Na última, prevalece o lamento. A temática do amor não realizado é abordado pela ótica do desejo de (re)construir o que não pode mais ser (re)construído. O poema é um pequeno edifício poético onde vive, no presente, um eu, querendo um passado inexistente. Um primor!




Aniversário
(Afonso Estebanez)

Hoje eu quero de presente
as perdas que nós tivemos
daquele encontro marcado
a que não comparecemos.

As marcas dos nossos pés
naquela estrada impedida,
os rumos daqueles passos
que jamais demos na vida.

O sonho que nem tivemos
e o que temos sem querer
ao acordarmos de sonhos
que sonhamos sem saber.

Ternuras para o consumo
das nossas almas abertas
ao instinto mais profundo
de nossas vidas desertas.

Ô! rosa que não me deste
esta flor ausente em mim
ô! o crepúsculo apagando
tão cedo no meu jardim...



Obs.: foi solicitada autorização ao autor. No entanto, não houve resposta. Caso o autor tenha alguma objeção à postagem do poema acima neste blog, que comunique através do e-mail jberna68@gmail.com.br. De qualquer forma, este blog agradece ao autor a existência do poema.

domingo, 20 de maio de 2012

Catando bascui, de Lília Diniz


Um poema delicadamente nostálgico. No sentido tradicional de nostalgia como saudade triste da pátria. E a infância (a boa infância!) não seria a nossa casa primeira e única e verdadeira pátria afetiva? E para lá, à infância, o eu poético se dirige e vai catando cacarecos ainda vivos na memória. Isso porque “Habita em mim/a singela casa/da minha infância”. (Trocadilho feliz!) E as imagens vão surgindo: o quintal farto, o limoeiro traquino, o passaredo em festança, o velho sabugueiro, abril em flores (bela construção!), o telhado de cavacos, lamparinas atrepadas, olhos meninos, o terreiro e o pai. E então chegamos aos bascuís, aos cacarecos. E estes, os bascuís, os cacarecos, muitas vezes tomados como simples objetos descartáveis, comuns ou sem valor são aquelas coisas que compõem os mais belos quadros das nossas memórias, das nossas lembranças, dos nossos sonhos. Que viagem saudosa e agradável a leitura desse poema!



Catando bascui
(Lília Diniz)

 
Habita em mim
a singela casa
da minha infância
 
Na fartura do quintal
o limoeiro traquino
florido sempre
adoçando meus ouvidos
com os cantares diários
do passaredo em festança
 
O velho sabugueiro
perfuma abril em flores
curando febres
estouradas em cataporas
e alucinações
em labaredas
 
O telhado de cavacos
pesa sobre o tempo
que insiste não passar
 
Lamparinas atrepadas
nas paredes de taipa
incandeiam a imensidão
dos meus olhos meninos
 
Sala
quarto
cozinha
abrigam o quase nada de mim
 
Mas é lá no terreiro
barrido todo amanhecer
pelas cuidadosas mãos de meu pai
que brinco de catar
restos de sonhos e lembranças





Obs.: foi solicitada autorização à autora. No entanto, não houve resposta. Caso a autora tenha alguma objeção à postagem do poema acima neste blog, que comunique através do e-mail jberna68@gmail.com.br. De qualquer forma, este blog agradece à autora a existência do poema.

terça-feira, 20 de março de 2012

O Deus que habita em mim, de Elias Akhenaton

Se eu acreditasse em Deus, diria que esse poema me transportou aos mais longínquos e luminosos recantos do encantado mundinho do meu Deus. E que lá vi todas as maravilhas descritas em minúcias sonoras e em vastos conceitos silenciosos. E então o meu Deus olhou o poema abaixo e riu. Agradou-se, pensei. Ele novamente riu.
Se eu não acreditasse em Deus, diria que todas aquelas palavras, de dentro, de fora e do meio, todas postas ludicamente no poema, trouxeram-me reminiscências e vazios de um Deus há muito calado e silenciado em tempos alheios ao meu. E, sob medos e indiferenças, vislumbrei uma face pairando mais acima, quase a rir. Agradou-se, pensei. Esperei um novo riso, que não veio.

(E lá se foi o comentário... Ficam, pois, as marcas desse poema em mim.)



O Deus que habita em mim
(Elias Akhenaton)



O Deus que habita minh’alma,
Vem da aurora dourada
Com seus raios vivificadores
Que renovam as esperanças e a Fé
Para um novo dia...

Vem dos lírios dos campos e
Dos jardins floridos...
Vem do crepúsculo do Sol com
Seu espetáculo de cores douradas
No horizonte...

Vem da noite enluarada
Com suas estrelas brilhantes,
Reluzentes, estrelas cadentes
E sua Lua encantada...

O Deus que habita minh’alma,
Vem do divino orvalho
Da madrugada
Com suas gotículas prateadas
Caindo sobre as flores delicadas...

Vem do lindo azul do mar,
De toda à natureza,
Das matas verdes e igarapés,
Cachoeiras e do lindo
Canto dos passarinhos
Como o canto do rouxinol e
Do bem-te-vi...
Vem dos Salmos de Davi....

O Deus que habita minh’alma
É o Deus do Amor, da mística rubra flor,
Do peregrino e trepidante beija-flor,
Dos nobres sentimentos
E enlevados pensamentos...

Vem da chuva que faz brotar...
Vem do místico arco-íris
Com suas cores sutis...
Vem da melodia
Da inspirada poesia...

Enfim, o Deus que habita em mim
É o mesmo que está em toda parte,
Em tudo e em todos,
No meu e no teu coração,
Somos filhos da mesma criação,
Do mesmo Pai Criador,
Portanto, somos todos Irmãos,
Filhos do Amor!




(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

segunda-feira, 19 de março de 2012

A pressa dos dias, de Sérgio Bernardo


O poema começa num golpe inevitável do destino: o amanhecer.
E então o eu poético é tomado pela natureza (água/cão amoroso).
Depois, o mistério, a interrogação que sempre paira sob as asas do desconhecido amanhã.
Destino, natureza, mistério. Amplas variações de abstratas viagens pelo universo exterior.
A partir da terceira estrofe, a rotina do cotidiano irrompe no seio do poema,
como a demarcar o espaço primordial do eu poético. Jornais, gato, volumes, rua, casa, dia. Muda-se a direção("porque há muito migrou/para uma dimensão contrária"): 
de um lugar externo e ignorado para dentro do eu poético. Nessa dimensão interior, os jornais (e quiçá a própria vida) "Serão lidos como obra de ficção,/ aqui e ali uma tentativa de poesia". A tentativa de poesia é significativa: representa a possibilidade de haver harmonia e beleza. Mas o rotina se impõe: o leite do gato, a ida ao trabalho, o atraso. Essa rotina desconstrói o interior e o exterior do eu poético. Morre a possibilidade de harmonia e beleza. O eu passa pelo dia como uma breve e insignificante brisa crepuscular ("coadjuvando o dia"). 
Encerra-se aqui o comentário desse belo e premiado poema. No entanto, não resisti a um adendo extemporâneo: “Assim:” o eu volta para casa, para dentro de si mesmo, onde há possibilidade de poesia.
 
 

A pressa dos dias
(Sérgio Bernardo) 


Sem outra opção, amanheceu.
Deixou a água lamber seu rosto
como cão amoroso.
 
Ao dormir, havia o mistério:
acordaria? não acordaria?
Ninguém decifra a intenção do seguinte.
 
Aqueles jornais ancorados no ladrilho
trarão notícias de um lugar ignorado,
porque há muito migrou
para uma dimensão contrária.
Serão lidos como obra de ficção,
aqui e ali uma tentativa de poesia
primariamente rimada.
 
Olhará o gato como animal extinto,
mas encherá o pote de leite
conforme toda manhã.
 
Sairá à rua abraçado a volumes
(a pasta de couro, papéis, guarda-chuva)
uma rua que o desconstruirá a cada passo.
 
Terá pressa. Chegará atrasado. Voltará para casa.
Assim: coadjuvando o dia.



(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

quarta-feira, 14 de março de 2012

14 de março, Dia Nacional da Poesia

O blog Poesia Selecionada parabeniza a todos os poetas e leitores.


"A poesia transforma todas a coisas em encanto: exalta a beleza daquilo que é mais belo e acrescenta beleza ao que está mais deformado; atrela o júbilo ao horror, a tristeza ao prazer, a eternidade à mudança; subjuga à união, sob o seu suave grilhão, todas as coisas irreconciliáveis." 

P. B. Shelley (1792-1822), poeta, ensaísta e tradutor inglês. In Uma defesa da poesia.


Poesia é vida! 




terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Interzona, de Celso Mendes

Um ser em pleno dilaceramento físico e mental. As palavras e os versos (referenciados na 1ª estrofe) já denotam as turbulências na mente aflita do eu poético. E só no amanhã haveria esperança de “um sorriso novo para este lamento”. Mas não adianta, pois “não há amanhãs, amanhãs são apenas sonhos”. Nem os versos nem o sorriso podem estabelecer a ordem, a paz interior. O eu poético volta-se então para o corpo físico, que se prende “às ervas daninhas da relva rasteira/para não deixar meus cacos à deriva”. O corpo bate em pedras, coleciona hematomas, enfeita-se com cicatrizes. O corpo é posto como objeto de expiação. Do corpo, portanto, nenhuma ajuda viria. Mas dos versos e das palavras, desses havia uma certa expectativa silenciosamente cultivada. E frustrada: “onde estariam aqueles versos da zona de luz?”. Um eu poético que não encontra amparo nem na estrutura física nem na textura mental. Poema de grande riqueza imagística, graças sobretudo aos jogos metafóricos (“palavras insolúveis passeiam em minha noite”, “versos da zona de luz”, “sorriso novo para este lamento”, “entristecer-me o azul”, “cacos à deriva”, “mãos amassam coágulos de vida”). Também são dignas de nota as personificações de sentimentos e objetos (palavras que passeiam, “o tato rubro de uma saudade/acariciar-me a nuca”, o corpo que coleciona hematomas). Poema em que nossa atenção se dilui entre a dor do eu poético e a beleza das imagens que serviram para descrever essa dor.



Interzona


(Celso Mendes)



palavras insolúveis passeiam em minha noite

infestadas de estrelas, aromas e pios de coruja,

ao tempo em que a boca esboça versos

que se prendem na zona de luz

e as mãos amassam coágulos de vida.


amanhã talvez eu percorra outras vitrines

e arranje um sorriso novo para este lamento

alojado em minha epiglote. não sei porquês,

mas sei que assim é, pois sinto o tato rubro de uma saudade

acariciar-me a nuca e entristecer-me o azul.


mas não há amanhãs, amanhãs são apenas sonhos:

prendo-me às ervas daninhas da relva rasteira

para não deixar meus cacos à deriva

enquanto meu corpo cansado bate nas pedras da corredeira

a colecionar hematomas que são só meus

e guardo com carinho. visito apenas caminhos que pisei

à espera de que a lua me embale o sono.

visto-me da mesma pele de sempre

adornada de conhecidas cicatrizes. acomodo-me,

aguardo o acordar com novas marcas.


neste então,

flutuo entre a relva e as pedras.


onde estariam aqueles versos da zona de luz?




(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Elegíaca, de Raimundo de Moraes

Um breve e nostálgico passeio com Clarice, seus textos, sua poesia, sua vida. Lá estão cenas das origens, da solidão, das viagens, do vazio, dos escritos, da morte. Clarice está em cada palavra, pairando sobre os versos antes que houvesse a luz da poesia de suas múltiplas existências. O olhar do eu poético revive a menina e a mulher de Felicidade clandestina e da aldeia onde nasceu Clarice (Tchetchelnik), o Recife da infância (“a Praça Maciel Pinheiro/circunda o Tempo/O casarão 387/é agora insípido e laranja”), as esquinas de terras distantes (“Nápoles Berna Torquay Washington”), as marcas judaicas (Kaddish), a força da “Palavra”. Poema elegíaco no conteúdo. Poema de amor elegantemente sóbrio, em que o eu poético quase que se anula, para fazer brilhar mais ainda a luz de Clarice. Poema que conta, inventa, recria e refaz a história de uma paixão literária. Um canto de amor à moda da musa “olhar oblíquo” e de “boca rubra”: impreciso, improvável, incontido, inexplicável. Um doce canto de amor à Clarice, à poesia, à arte, à vida. Clarice não morreu! A poesia também não!



Elegíaca

(Raimundo de Moraes)


"A palavra é a minha quarta dimensão."
Clarice Lispector


Segui os passos
da menina de Tchetchelnik.
Dez luas passaram flechadas por Sagitário
Maçãs no claro ofertam-se de tanta maturação:
ensangüentadas, reluzem. Balançam lustres
em din-dlens de poeira suja.
Aqui
a Praça Maciel Pinheiro
circunda o Tempo.
O casarão 387
é agora insípido e laranja
(mas vi entre uma e outra janela
a menina sorrir para mundos distantes).
Longe
as esquinas de Nápoles Berna Torquay Washington.
(As esquinas do mundo são iguais
quando punge à solidão
a lembrança de tudo que fomos).
Corro pelos caminhos de mais um solstício
a cidade ergue-se em dóricas faiscantes
escaravelhos brotam da terra
e no rosto eslavo
pupilas pulsam quasars.
É por ti:
elevo-me à tua memória.
Candelabros iluminando a noite
o Kaddish arrebanhando os perdidos como nós
- percorro os caminhos da mulher de Tchetchelnik.
O olhar oblíquo.
A boca rubra.
A safira no dedo.
A Estrela de Mil Pontas
rompendo gargantas. É Palavra.
Aponta Sagitário mais uma seta em riste.
Agora, sabeis: no coração selvagemente livre.


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Um punhado de palavras, de Ana Paula Mateus

A metalinguagem no texto poético é uma das vertentes mais cultivadas na poesia contemporânea. Já se disse que o tema está esgotado, mas a profusão de autores e poemas dedicados a falar do escrever, da palavra e da poesia não indica que a coisa esteja prestes a perecer. Desconfio que o metapoema ou a metapoesia entrará, na posteridade, para o rol dos temas poéticos eternos, tal o amor, a morte, o tempo e mais alguns poucos. O poema ora comentado é um esplêndido exemplar de que a poesia (e seus órgãos vitais — as palavras, as figuras de linguagem e as sonoridades) ainda pode, sob algumas penas (ou teclados), ser um tema delicioso. No poema, as palavras são tratadas com ternura, com delicadeza, com afeição, com amor. São “guardadas nas mãos em concha”, são emprestadadas pelos deuses, são lidas nas estrelas, são “brilhantes, luminosas/palavras de riso claro”, são perfumadas, musicais, fortes, indeléveis e eternas. São colhidas nos sonhos, nos céus, nas bocas, nas areias e nas estradas. O poema mostra aspectos lúdicos, ricos e prazerosos da relação do eu com as palavras, com o fazer poético, com a poesia. Embora não esteja explícita, a palavra que conduz o fluir do poema é encantamento. As palavras provocam e produzem um encantamento único. E até a solidão e a tristeza por vezes são tragadas por esse encantamento poético (“E passa-me o frio cá dentro”). Lindo poema!


Um punhado de palavras


(Ana Paula Mateus
)


Trago um punhado de palavras
guardadas nas mãos em concha.
Encontrei-as nos livros, ditas pelos poetas...
Li-as nas estrelas... Emprestaram-mas os deuses...
Roubei-as à tua boca.
São palavras brilhantes, luminosas,
palavras de riso claro,
sussurradas ao ouvido no instante do abraço,
palavras ardentes, soltas
no beijo dado com a urgência da saudade.
São palavras perfumadas,
cheiram a eucalipto orvalhado pela manhã,
cheiram a velas queimadas em dia de aniversário,
cheiram a terra molhada
e a relva acabada de cortar...
São palavras musicais, como um espanta-espíritos
em dança vadia com o vento ao cair da tarde...
Foram escritas na areia da praia,
sobrevivendo aos vendavais
e aos pés descalços dos caminhantes,
à fúria das gaivotas e ao abraço salgado
das ondas inconstantes...
São fortes e indeléveis.
São eternas as minhas palavras.

E quando às vezes me engano na estrada
ou me perco nos caminhos,
quando sinto os passos cansados ou inseguros,
sento-me na berma e olho-as de frente,
tatuadas na pele gasta das mãos calejadas...

Leio-as muitas e muitas vezes...

Repito-as baixinho...
E passa-me o frio cá dentro.



(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Asilo, de Fabrício de Queiroz Venâncio

Uma fotografia do abandono. Um recorte de uma solidão anunciada de há muito. Poema de uma tristeza cortante, lenta e profunda. Em cada estrofe, uma imagem que angustia. Objetos inanimados em paisagens melancólicas: “Na estante,/a camisa desbotada”, “A cadeira balança preguiçosa”. Na segunda estrofe, o tempo parece ter parado para prolongar mais ainda a letargia que perpassa não apenas o dono da lágrima e dos pés moles, como também atinge o observador que descreve. A última estrofe sintetiza a dolorosa transição entre o velho e o novo, entre a vida que se vai e a vida que chega. No meio do caminho, “Uma lágrima corre atrevida”. Poema de uma tristeza linear, sem oscilações ou sobressaltos. Poema de acabamento semântico exemplar.


Asilo

(Fabrício de Queiroz Venâncio)

Na estante, a camisa desbotada;
armários, madeira, mofo:
a alergia já tomou conta.

Não se sabe o turno do tempo,
derradeira visita é lembrança falha
no derreter das horas.

A cadeira balança preguiçosa;
corpo, odor, sujeira:
não houve banho esta manhã.

Uma lágrima corre atrevida,
e a criança tropeça nos pés moles
que incomodam a passagem.



(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Poema de Neuzza Pinheiro

Poema rico em significâncias poéticas. O medo inicial volta-se para o que os olhos veem; em seguida, o medo se estende ao que não está sob o olhar do eu poético; por fim, abarca o tempo, a vida, o próprio eu. Ou seja, numa ponta, o que está próximo, o que está distante e o que se revela intangível; em outra ponta, o medo do fim da descendência (o filho, a árvore), do fim da subsistência (emocional/espiritual, homem/deus) e do fim da própria existência (o tempo, a vida, o eu). Em cada estrofe, a supressão de algo que conecta, que estabelece a ligação física no poema(no caso, o “que”). No entanto, há uma supressão e um corte maiores e mais profundos na última estrofe, na qual a supressão vai além do aspecto físico: é o existir que se encontra partido (“eu des/aconteça...”), carente, incompleto, faltando. Outra riqueza do poema é como se estrutura o inventário dos (possíveis) personagens furtivos causadores dos medos: o tempo na primeira estrofe (talvez não haja tempo!), o criador/mantenedor na segunda (deus/homem) e a morte na terceira estrofe (a morte que extingue o tempo, a vida, o eu). Muita riqueza sob as nuvens do medo.



Medo
que um filho adoeça
que uma árvore não cresça
o céu desabe sobre a minha cabeça

Medo
que meu homem não volte
que algum deus se revolte
a lua se canse e desapareça

Medo
que o tempo não baste
que a vida me falte
eu des
aconteça...

(Neuzza Pinheiro)



(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Solidão tão minha, de Ana Kosby

“Me busca no espaço este vazio do corpo”. Espaço. Vazio. Corpo. Três palavras. Inúmeros entrelaçamentos possíveis. O estranhamento (característica de uma certa linhagem poética desde o final do século XIX) deixa sua marca logo no primeiro verso. E então surge uma bela imagem poética: “solidão tão minha/esta de sentir-me apenas luz/pairando sobre os leitos de carne”. A luz pairando sobre os leitos de carne: o imaterial, o etéreo pairando sobre o material. Também o sentimento (a solidão) pairando sobre o corpo. Em seguida, a descrição da solidão com substantivos fortes e germinativos (obrigação, direitos, criação). Depois, o conflito entre o ser e o existir e um breve interlúdio no “réquiem solitário” para a esperança de liberdade. O poema aborda uma solidão que é, a um só tempo, umbilical, “placentária” e “planetária”, universal. Uma solidão que não se ressente de um amor findo, e sim do distanciamento e do enfrentamento em relação ao mundo (“nas costas o peso da sociedade”). O estranhamento não está apenas no jogo semântico das palavras, mas também na solidão do eu poético frente à humanidade. Muito bem elaborado o quadro descritivo da solidão entre o particular e o geral, entre o material e o imaterial.




Solidão tão minha

(Ana Kosby)



Me busca no espaço este vazio do corpo
solidão tão minha
esta de sentir-me apenas luz
pairando sobre os leitos de carne
despida de obrigação,
de direitos de criação
coberta de penas e castigos
tecidos umbigos de genes
incongruentes, parentes
parênteses entre o ser e o não existir
além da expectativa humana
tão vil, vulgar, material e insana.
herança?
Apenas a triste esperança da liberdade
no réquiem solitário.

Solidão tão minha...
placentária, planetária
alma além da idade
burra velha, carregando
nas costas o peso da sociedade.


(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012