sexta-feira, 25 de maio de 2012

Aniversário, de Afonso Estebanez


Um primor de poema. Parece uma construção de estrutura e acabamento impecáveis. Ritmo agradável, aqui e acolá uma rima, métrica de redondilha maior. Mas o mais encantador no poema é o tom melancolicamente jocoso com que são expostos os desejos do eu poético nas três primeiras estrofes. Na última, prevalece o lamento. A temática do amor não realizado é abordado pela ótica do desejo de (re)construir o que não pode mais ser (re)construído. O poema é um pequeno edifício poético onde vive, no presente, um eu, querendo um passado inexistente. Um primor!




Aniversário
(Afonso Estebanez)

Hoje eu quero de presente
as perdas que nós tivemos
daquele encontro marcado
a que não comparecemos.

As marcas dos nossos pés
naquela estrada impedida,
os rumos daqueles passos
que jamais demos na vida.

O sonho que nem tivemos
e o que temos sem querer
ao acordarmos de sonhos
que sonhamos sem saber.

Ternuras para o consumo
das nossas almas abertas
ao instinto mais profundo
de nossas vidas desertas.

Ô! rosa que não me deste
esta flor ausente em mim
ô! o crepúsculo apagando
tão cedo no meu jardim...



Obs.: foi solicitada autorização ao autor. No entanto, não houve resposta. Caso o autor tenha alguma objeção à postagem do poema acima neste blog, que comunique através do e-mail jberna68@gmail.com.br. De qualquer forma, este blog agradece ao autor a existência do poema.

domingo, 20 de maio de 2012

Catando bascui, de Lília Diniz


Um poema delicadamente nostálgico. No sentido tradicional de nostalgia como saudade triste da pátria. E a infância (a boa infância!) não seria a nossa casa primeira e única e verdadeira pátria afetiva? E para lá, à infância, o eu poético se dirige e vai catando cacarecos ainda vivos na memória. Isso porque “Habita em mim/a singela casa/da minha infância”. (Trocadilho feliz!) E as imagens vão surgindo: o quintal farto, o limoeiro traquino, o passaredo em festança, o velho sabugueiro, abril em flores (bela construção!), o telhado de cavacos, lamparinas atrepadas, olhos meninos, o terreiro e o pai. E então chegamos aos bascuís, aos cacarecos. E estes, os bascuís, os cacarecos, muitas vezes tomados como simples objetos descartáveis, comuns ou sem valor são aquelas coisas que compõem os mais belos quadros das nossas memórias, das nossas lembranças, dos nossos sonhos. Que viagem saudosa e agradável a leitura desse poema!



Catando bascui
(Lília Diniz)

 
Habita em mim
a singela casa
da minha infância
 
Na fartura do quintal
o limoeiro traquino
florido sempre
adoçando meus ouvidos
com os cantares diários
do passaredo em festança
 
O velho sabugueiro
perfuma abril em flores
curando febres
estouradas em cataporas
e alucinações
em labaredas
 
O telhado de cavacos
pesa sobre o tempo
que insiste não passar
 
Lamparinas atrepadas
nas paredes de taipa
incandeiam a imensidão
dos meus olhos meninos
 
Sala
quarto
cozinha
abrigam o quase nada de mim
 
Mas é lá no terreiro
barrido todo amanhecer
pelas cuidadosas mãos de meu pai
que brinco de catar
restos de sonhos e lembranças





Obs.: foi solicitada autorização à autora. No entanto, não houve resposta. Caso a autora tenha alguma objeção à postagem do poema acima neste blog, que comunique através do e-mail jberna68@gmail.com.br. De qualquer forma, este blog agradece à autora a existência do poema.