terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Interzona, de Celso Mendes

Um ser em pleno dilaceramento físico e mental. As palavras e os versos (referenciados na 1ª estrofe) já denotam as turbulências na mente aflita do eu poético. E só no amanhã haveria esperança de “um sorriso novo para este lamento”. Mas não adianta, pois “não há amanhãs, amanhãs são apenas sonhos”. Nem os versos nem o sorriso podem estabelecer a ordem, a paz interior. O eu poético volta-se então para o corpo físico, que se prende “às ervas daninhas da relva rasteira/para não deixar meus cacos à deriva”. O corpo bate em pedras, coleciona hematomas, enfeita-se com cicatrizes. O corpo é posto como objeto de expiação. Do corpo, portanto, nenhuma ajuda viria. Mas dos versos e das palavras, desses havia uma certa expectativa silenciosamente cultivada. E frustrada: “onde estariam aqueles versos da zona de luz?”. Um eu poético que não encontra amparo nem na estrutura física nem na textura mental. Poema de grande riqueza imagística, graças sobretudo aos jogos metafóricos (“palavras insolúveis passeiam em minha noite”, “versos da zona de luz”, “sorriso novo para este lamento”, “entristecer-me o azul”, “cacos à deriva”, “mãos amassam coágulos de vida”). Também são dignas de nota as personificações de sentimentos e objetos (palavras que passeiam, “o tato rubro de uma saudade/acariciar-me a nuca”, o corpo que coleciona hematomas). Poema em que nossa atenção se dilui entre a dor do eu poético e a beleza das imagens que serviram para descrever essa dor.



Interzona


(Celso Mendes)



palavras insolúveis passeiam em minha noite

infestadas de estrelas, aromas e pios de coruja,

ao tempo em que a boca esboça versos

que se prendem na zona de luz

e as mãos amassam coágulos de vida.


amanhã talvez eu percorra outras vitrines

e arranje um sorriso novo para este lamento

alojado em minha epiglote. não sei porquês,

mas sei que assim é, pois sinto o tato rubro de uma saudade

acariciar-me a nuca e entristecer-me o azul.


mas não há amanhãs, amanhãs são apenas sonhos:

prendo-me às ervas daninhas da relva rasteira

para não deixar meus cacos à deriva

enquanto meu corpo cansado bate nas pedras da corredeira

a colecionar hematomas que são só meus

e guardo com carinho. visito apenas caminhos que pisei

à espera de que a lua me embale o sono.

visto-me da mesma pele de sempre

adornada de conhecidas cicatrizes. acomodo-me,

aguardo o acordar com novas marcas.


neste então,

flutuo entre a relva e as pedras.


onde estariam aqueles versos da zona de luz?




(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Elegíaca, de Raimundo de Moraes

Um breve e nostálgico passeio com Clarice, seus textos, sua poesia, sua vida. Lá estão cenas das origens, da solidão, das viagens, do vazio, dos escritos, da morte. Clarice está em cada palavra, pairando sobre os versos antes que houvesse a luz da poesia de suas múltiplas existências. O olhar do eu poético revive a menina e a mulher de Felicidade clandestina e da aldeia onde nasceu Clarice (Tchetchelnik), o Recife da infância (“a Praça Maciel Pinheiro/circunda o Tempo/O casarão 387/é agora insípido e laranja”), as esquinas de terras distantes (“Nápoles Berna Torquay Washington”), as marcas judaicas (Kaddish), a força da “Palavra”. Poema elegíaco no conteúdo. Poema de amor elegantemente sóbrio, em que o eu poético quase que se anula, para fazer brilhar mais ainda a luz de Clarice. Poema que conta, inventa, recria e refaz a história de uma paixão literária. Um canto de amor à moda da musa “olhar oblíquo” e de “boca rubra”: impreciso, improvável, incontido, inexplicável. Um doce canto de amor à Clarice, à poesia, à arte, à vida. Clarice não morreu! A poesia também não!



Elegíaca

(Raimundo de Moraes)


"A palavra é a minha quarta dimensão."
Clarice Lispector


Segui os passos
da menina de Tchetchelnik.
Dez luas passaram flechadas por Sagitário
Maçãs no claro ofertam-se de tanta maturação:
ensangüentadas, reluzem. Balançam lustres
em din-dlens de poeira suja.
Aqui
a Praça Maciel Pinheiro
circunda o Tempo.
O casarão 387
é agora insípido e laranja
(mas vi entre uma e outra janela
a menina sorrir para mundos distantes).
Longe
as esquinas de Nápoles Berna Torquay Washington.
(As esquinas do mundo são iguais
quando punge à solidão
a lembrança de tudo que fomos).
Corro pelos caminhos de mais um solstício
a cidade ergue-se em dóricas faiscantes
escaravelhos brotam da terra
e no rosto eslavo
pupilas pulsam quasars.
É por ti:
elevo-me à tua memória.
Candelabros iluminando a noite
o Kaddish arrebanhando os perdidos como nós
- percorro os caminhos da mulher de Tchetchelnik.
O olhar oblíquo.
A boca rubra.
A safira no dedo.
A Estrela de Mil Pontas
rompendo gargantas. É Palavra.
Aponta Sagitário mais uma seta em riste.
Agora, sabeis: no coração selvagemente livre.


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Um punhado de palavras, de Ana Paula Mateus

A metalinguagem no texto poético é uma das vertentes mais cultivadas na poesia contemporânea. Já se disse que o tema está esgotado, mas a profusão de autores e poemas dedicados a falar do escrever, da palavra e da poesia não indica que a coisa esteja prestes a perecer. Desconfio que o metapoema ou a metapoesia entrará, na posteridade, para o rol dos temas poéticos eternos, tal o amor, a morte, o tempo e mais alguns poucos. O poema ora comentado é um esplêndido exemplar de que a poesia (e seus órgãos vitais — as palavras, as figuras de linguagem e as sonoridades) ainda pode, sob algumas penas (ou teclados), ser um tema delicioso. No poema, as palavras são tratadas com ternura, com delicadeza, com afeição, com amor. São “guardadas nas mãos em concha”, são emprestadadas pelos deuses, são lidas nas estrelas, são “brilhantes, luminosas/palavras de riso claro”, são perfumadas, musicais, fortes, indeléveis e eternas. São colhidas nos sonhos, nos céus, nas bocas, nas areias e nas estradas. O poema mostra aspectos lúdicos, ricos e prazerosos da relação do eu com as palavras, com o fazer poético, com a poesia. Embora não esteja explícita, a palavra que conduz o fluir do poema é encantamento. As palavras provocam e produzem um encantamento único. E até a solidão e a tristeza por vezes são tragadas por esse encantamento poético (“E passa-me o frio cá dentro”). Lindo poema!


Um punhado de palavras


(Ana Paula Mateus
)


Trago um punhado de palavras
guardadas nas mãos em concha.
Encontrei-as nos livros, ditas pelos poetas...
Li-as nas estrelas... Emprestaram-mas os deuses...
Roubei-as à tua boca.
São palavras brilhantes, luminosas,
palavras de riso claro,
sussurradas ao ouvido no instante do abraço,
palavras ardentes, soltas
no beijo dado com a urgência da saudade.
São palavras perfumadas,
cheiram a eucalipto orvalhado pela manhã,
cheiram a velas queimadas em dia de aniversário,
cheiram a terra molhada
e a relva acabada de cortar...
São palavras musicais, como um espanta-espíritos
em dança vadia com o vento ao cair da tarde...
Foram escritas na areia da praia,
sobrevivendo aos vendavais
e aos pés descalços dos caminhantes,
à fúria das gaivotas e ao abraço salgado
das ondas inconstantes...
São fortes e indeléveis.
São eternas as minhas palavras.

E quando às vezes me engano na estrada
ou me perco nos caminhos,
quando sinto os passos cansados ou inseguros,
sento-me na berma e olho-as de frente,
tatuadas na pele gasta das mãos calejadas...

Leio-as muitas e muitas vezes...

Repito-as baixinho...
E passa-me o frio cá dentro.



(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Asilo, de Fabrício de Queiroz Venâncio

Uma fotografia do abandono. Um recorte de uma solidão anunciada de há muito. Poema de uma tristeza cortante, lenta e profunda. Em cada estrofe, uma imagem que angustia. Objetos inanimados em paisagens melancólicas: “Na estante,/a camisa desbotada”, “A cadeira balança preguiçosa”. Na segunda estrofe, o tempo parece ter parado para prolongar mais ainda a letargia que perpassa não apenas o dono da lágrima e dos pés moles, como também atinge o observador que descreve. A última estrofe sintetiza a dolorosa transição entre o velho e o novo, entre a vida que se vai e a vida que chega. No meio do caminho, “Uma lágrima corre atrevida”. Poema de uma tristeza linear, sem oscilações ou sobressaltos. Poema de acabamento semântico exemplar.


Asilo

(Fabrício de Queiroz Venâncio)

Na estante, a camisa desbotada;
armários, madeira, mofo:
a alergia já tomou conta.

Não se sabe o turno do tempo,
derradeira visita é lembrança falha
no derreter das horas.

A cadeira balança preguiçosa;
corpo, odor, sujeira:
não houve banho esta manhã.

Uma lágrima corre atrevida,
e a criança tropeça nos pés moles
que incomodam a passagem.



(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Poema de Neuzza Pinheiro

Poema rico em significâncias poéticas. O medo inicial volta-se para o que os olhos veem; em seguida, o medo se estende ao que não está sob o olhar do eu poético; por fim, abarca o tempo, a vida, o próprio eu. Ou seja, numa ponta, o que está próximo, o que está distante e o que se revela intangível; em outra ponta, o medo do fim da descendência (o filho, a árvore), do fim da subsistência (emocional/espiritual, homem/deus) e do fim da própria existência (o tempo, a vida, o eu). Em cada estrofe, a supressão de algo que conecta, que estabelece a ligação física no poema(no caso, o “que”). No entanto, há uma supressão e um corte maiores e mais profundos na última estrofe, na qual a supressão vai além do aspecto físico: é o existir que se encontra partido (“eu des/aconteça...”), carente, incompleto, faltando. Outra riqueza do poema é como se estrutura o inventário dos (possíveis) personagens furtivos causadores dos medos: o tempo na primeira estrofe (talvez não haja tempo!), o criador/mantenedor na segunda (deus/homem) e a morte na terceira estrofe (a morte que extingue o tempo, a vida, o eu). Muita riqueza sob as nuvens do medo.



Medo
que um filho adoeça
que uma árvore não cresça
o céu desabe sobre a minha cabeça

Medo
que meu homem não volte
que algum deus se revolte
a lua se canse e desapareça

Medo
que o tempo não baste
que a vida me falte
eu des
aconteça...

(Neuzza Pinheiro)



(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Solidão tão minha, de Ana Kosby

“Me busca no espaço este vazio do corpo”. Espaço. Vazio. Corpo. Três palavras. Inúmeros entrelaçamentos possíveis. O estranhamento (característica de uma certa linhagem poética desde o final do século XIX) deixa sua marca logo no primeiro verso. E então surge uma bela imagem poética: “solidão tão minha/esta de sentir-me apenas luz/pairando sobre os leitos de carne”. A luz pairando sobre os leitos de carne: o imaterial, o etéreo pairando sobre o material. Também o sentimento (a solidão) pairando sobre o corpo. Em seguida, a descrição da solidão com substantivos fortes e germinativos (obrigação, direitos, criação). Depois, o conflito entre o ser e o existir e um breve interlúdio no “réquiem solitário” para a esperança de liberdade. O poema aborda uma solidão que é, a um só tempo, umbilical, “placentária” e “planetária”, universal. Uma solidão que não se ressente de um amor findo, e sim do distanciamento e do enfrentamento em relação ao mundo (“nas costas o peso da sociedade”). O estranhamento não está apenas no jogo semântico das palavras, mas também na solidão do eu poético frente à humanidade. Muito bem elaborado o quadro descritivo da solidão entre o particular e o geral, entre o material e o imaterial.




Solidão tão minha

(Ana Kosby)



Me busca no espaço este vazio do corpo
solidão tão minha
esta de sentir-me apenas luz
pairando sobre os leitos de carne
despida de obrigação,
de direitos de criação
coberta de penas e castigos
tecidos umbigos de genes
incongruentes, parentes
parênteses entre o ser e o não existir
além da expectativa humana
tão vil, vulgar, material e insana.
herança?
Apenas a triste esperança da liberdade
no réquiem solitário.

Solidão tão minha...
placentária, planetária
alma além da idade
burra velha, carregando
nas costas o peso da sociedade.


(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)