quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Gavetas Purificadas, de Betusko

Há quem considere a introdução e o fechamento de um poema a alma da coisa poética. Isso, obviamente, considerando a poesia moderna ou pós-moderna (termozinho complicado e vazio esse...). Na poesia clássica, as regras formais tinham muito mais importância no todo do poema. No poema abaixo, há pelo menos duas interpretações (dentro de uma perspectiva de análise mais moderna): (1ª) introdução e fechamento estão intimamente ligados um ou ao outro, mesmo que isso nem sempre possa ser percebido numa leitura inicial. “Hoje acordei justiceiro/com fome de arrumar as gavetas” abre as portas para todo o desenvolvimento descritivo/explicativo que vai fuçando os baús da casa, os armários, as gavetas e a própria vida emocional do eu poético. Mas por que essa sede de justiça? Isso só é compreendido ao final, nos últimos versos, quando entra em cena (no texto) Maria, a foto rasgada e sobretudo a frase mentirosa contida no verso da foto (“te amarei por toda a minha vida…”). É como se o eu poético precisasse purificar as coisas e a si mesmo, fazer justiça consigo mesmo ao apagar (ou pelo menos tentar) as coisas que adornam o contexto da existência de Maria. Para tanto, o longo inventário de coisas e sentimentos que devem sair de cena (da memória). São coisas que precisam ser abandonadas pela fala ou pela escrita, para deixarem de ser partes de um quadro fantasmagórico a assombrar o inventariante. (2ª) Maria talvez seja apenas mais um objeto a ser jogado fora das gavetas da memória do eu poético, para uma renovação ampla e irrestrita desse eu. Ainda assim, introdução e fechamento continuam entranhados, agora como olhares que se cruzam e se completam ao acaso. Bom ver poemas com uma estrutura bem posta, intencionalmente ou não.



Gavetas Purificadas

(Betusko)



Hoje acordei justiceiro
com fome de arrumar as gavetas
que vivem sempre abarrotadas
de coisas sem valia, sem perdão
cujo prazo de validade ficou para trás,
sendo assim condenadas
ao cesto implacável da cremação,

são fotos sem enquadramento
sem pé nem cabeça,
são porcas e parafusos enferrujados
que habitam, há anos, em um tupperware lacrado,
são contas e mais contas pagas e amareladas
cansadas de esperar pela audiência
de um único credor desconfiado,
são receituários antigos de médicos tão velhos
que já não curam a urticária, quanto mais a ansiedade,
são receitas de bacalhau que nunca viram a luz do sol
muito menos o fio de azeite dançando
sobre suas postas imaginárias,
são baterias semi descarregadas
atracadas com aparelhos de celulares pré-históricos
com rabichos e rabichos de carregadores
que por não se encaixarem aos demais equipamentos
tornaram-se casmurros e solitários,
são calças e blusas magras de marré de si
que só fazem lembrar de um passado Zero Cal
longe das bombásticas tentações achocolatadas,
são emoções baratas que já não surtem efeito
neste velho coração bandoleiro
cansado de películas antigas em VHS,
são superstições tão bobas, de um garoto suburbano
que não fazem frente
ao menor dos sintomas de um TOC,
são roupas vermelhas e brancas
de uma era em que se acreditava em Papai Noel
e em políticos politicamente corretos
que não tripudiavam sobre caseiros ingênuos,
ou secretárias sagradas,
nem roubavam merendas escolares;
são esperanças envelhecidas e malsãs
de um dia ganhar o mundo à revelia
fincando uma bandeira em cada canto do planeta

e tem também a gaveta dos projetos esquecidos
dos anseios desnecessários
das canções abandonadas e sem festivais
e, sobretudo, o último compartimento em desalinho
aquele dos amores acontecidos
do qual, sem antes titubear,
rasguei uma foto de Maria
cujo verso mentia em letras garrafais:
te amarei por toda a minha vida…


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

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