segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

se eu morrer por esses dias, de Daniela Damaris

O título já nos induz a algum tipo de reflexão poética (além da existencial, obviamente). A primeira estrofe nos remete a um contexto quase que impensável antes da leitura: sem filhos biológicos, talvez tenhamos filhos pelos nebulosos caminhos da poesia. A segunda expressa o desejo de que a alma espalhe renascimentos poéticos. A terceira faz uma ponte entre os amores (falidos ou inexistentes) deste mundo com os amores de um outro mundo que reluz mil ouros, ou seja, amores reluzentes. No entanto, o eu poético pode morrer de algum outro tipo de amor. A quarta estrofe abranda os anseios e expõe apenas o desejo de que não haja trajes de luto. E, por fim, a quinta e última estrofe, onde é realizada a fusão, no desejo, entre o vagar pelo etéreo e pelo concreto, entre céus e bocas e línguas. Um poema que fala de morte quase que ludicamente. E a morte, tal desejada no poema, deve ser breve, calma, de amor e sem luto. Que morte linda! Que lindo poema!


se eu morrer por esses dias

(Daniela Damaris)



se eu morrer por esses dias
que morra de morte bem breve
que de leve se encostem os cílios
e que os filhos que ainda não tive
nasçam dos versos que aqui deixei


se eu morrer por esses dias
que seja de morte bem calma
que a alma lhes cante auroras
em ases e reis
de poesia


se eu morrer por esses dias
decerto morro de amores
que não há neste
ou noutro mundo
bem que tais mil ouros reluz


se eu morrer por esses dias
não há que trajarem luto
que já morri em cada rima
em que amores
se conduz


que já sou alma que vaga em vida
morta basta que siga
a vagar em céus de negro e sombras
e em bocas secas que rondam
por línguas ébrias de amar



(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

De trago em trago, de Cris de Souza

Estruturado em dois blocos, o poema, hoje, segue na contramão do politicamente correto. A caça aos fumantes cresce a cada dia, é bem sabido. O texto não condena o cigarro. Mas não se trata também de uma ode ao cigarro nem ao fumante. No primeiro bloco, um eu que contempla, na fumaça, o esquecimento. No segundo, contempla o entendimento. Esquecer e entender são, na verdade, reflexões comuns aos fumantes em especial. É preciso esquecer certas coisas que ficam em suspenso, à espera de atitudes mais firmes ou objetivas. Mas é preciso entender (e aceitar) a si mesmo, filtrando virtudes e defeitos, para acordar (despertar) algo que parece poder renascer. Poema leve, suave. A fumaça também é leve, suave (de longe, bem longe!). O tema foi tratado com bastante delicadeza. Leitura reflexiva, para os não fumantes e para os fumantes. Para estes, com direito a caracóis de fumaça antes, durante e depois.



De trago em trago

(Cris de Souza)



trago
o esquecimento
na fumaça
dos meus dedos

tentando apagar
meus restos
pendurados
no cinzeiro

trago
o entendimento
no filtro
dos meus dedos

tentando acordar
meus restos
pernoitados
no cinzeiro


(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

domingo, 22 de janeiro de 2012

Frase de Mário Quintana















"Bendito quem inventou o belo truque do calendário, pois o bom da segunda-feira, do dia 1º do mês e de cada ano novo é que nos dão a impressão de que a vida não continua, mas apenas recomeça..."

Lucidez, de Domingos Barroso

Um eu poético que se manifesta ceticamente em relação à vida, às pessoas e aos sentimentos. Já disseram que o cético é aquele que mais tem medo de sofrer. Os desejos do eu (no poema) bem poderiam compor um catecismo dos céticos. No entanto, até mesmo o cético acredita em algo: que existe uma verdade, nem que seja a de que o ceticismo é o caminho, nem que esteja na paz dos chinelos. Poema racional, mas permeado de subjetividades. E uma gota de metafísica (“Sei.../da longa vida que é a morte”). Uma gota num oceano de niilismo. Poema que honra a tradição niilista da poesia.



Lucidez

(Domingos Barroso)



Que ninguém e nada
conspirem a meu favor.

Que o mundo permaneça alheio
e as coisas inalteradas.

Que a montanha não se mova
em minha direção e o mar
não se corte ao meio
por minha causa.

Que as estrelas nasçam e morram
sem mandarem notícias
do corredor escuro
de outras galáxias.

Que o meu bermudão não mostre seus bolsos
nem procurem nas minhas mãos moedas.

Que as minhas botas durmam
sem sonhar com as calçadas.

Que anjos não pensem em mim
nem façam da minha alma
uma aurora.

Que demônios esqueçam
o vazio da minha mente.

Que ninguém e nada
conspirem a meu favor.

Sei muito bem das emboscadas.
Da luz que finda e do grito.
Do olhar cúmplice
e da revolta.

Apartem-se do meu coração os arautos da felicidade.
Esses cães dos próprios ossos e da própria carne.

Sei do descuido, da farsa,
da longa vida que é a morte.

Que ninguém e nada prometam-me
a vida e o seu deleite em outra terra.

Que a paz dos meus chinelos
seja toda a verdade
que vejo -

sem truque,
sem medo.


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Carta ao tempo, Aíla Sampaio

Poema em prosa ou prosa poética? A resposta tem pouca (ou nenhuma) importância. O essencial é a viagem pelo tempo, ao vento e nos sentimentos ao longo de todo o texto. O eu poético escreve ao tempo, para que dores sejam levadas, esquecidas. Um amor precisa ser esquecido, para que outro possa ser conhecido (em todos os sentidos). E então há um desfile de alguns desejos, mas, sobretudo, que “sobreviva apenas a poesia soberba da vida” para celebrar um novo amor. No entanto, esse amor ainda não se concretizou, ainda vive guardado nas palavras. Breve ganhará o corpo, o mundo, a vida por inteira. Texto poético: imagens belíssimas (“cartas que escrevo ao tempo”, “de mãos dadas com o vento”, “tatuando em cada poro o cheiro desse amor nascente” e “os sapatos já saíram da caixa. Falta muito pouco para saírem andando por aí”); sentimentos bem cadenciados na estrutura do texto, com a primeira parte (até “Que seque toda seiva que se derrame em vão”) toda dedicada ao antigo amor, e a segunda (de “sobreviva apenas a poesia soberba da vida” até o final do texto) dedicada ao novo amor; pela delicada e sóbria descrição dos sentimentos (dor, desejo, esperança). Belíssimo texto!
(Lamento o comentário não ter sido tão breve quanto o texto principal. Foi inevitável!)



Carta ao tempo

(Aíla Sampaio)


A gente esquece o nome quem têm algumas dores. Sim, porque algumas delas têm nome e endereço fixo, mas não têm remédio. Daí as cartas que escrevo ao tempo, pedindo que passe passe passe, de mãos dadas com o vento, e leve as histórias mal contadas daquele amor que gostava dessa rima pobre. Que não fique sequer um pé de esperança aonde não pode brotar flor. Que seque toda seiva que se derrame em vão e sobreviva apenas a poesia soberba da vida tatuando em cada poro o cheiro desse amor nascente. Esse tem asas que não são descartáveis e só sabe rimar com felicidade. Sua tristeza é sincera, sua alegria não é postiça. Seu esconderijo, por enquanto, são as minhas palavras, mas, em breve, será o meu corpo... os sapatos já saíram da caixa. Falta muito pouco para saírem andando por aí.



(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima. O link direto da postagem original é http://literaila.blogspot.com/2012/01/carta-ao-tempo.html)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Derivados, de Juçana Corrêa

Pequeno poema que muito expressa acerca do amor e da existência. Pode ser resumido numa simples constatação: a de que somos apenas corpos à procura de corpos para o preenchimento de mútuos vazios. Na caminhada do viver, há algumas pedras no meio do caminho: o próprio vazio, a repulsa, o desvio e o tempo que apaga nossas pegadas. Os termos científicos (matéria, núcleos, partículas) remetem a uma objetividade supostamente universal. No entanto, essa objetividade existe dentro da subjetividade do eu poético. Poema reflexivo, mesmo na brevidade. Triste, matando toda e qualquer objetividade no fazer poético. Belo!


Derivados

(Juçana Corrêa)



então somos isto:
este emaranhado
de matéria à procura
de outra matéria
contra a qual se chocar
…mas o vazio dos núcleos
…mas a repulsão das partículas
…mas o desvio das rotas
enquanto nossas pegadas
na areia da praia
se desmancham
na nova maré



(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

Visitação, de Luciano Maia

Poucos versos, muitas imagens. Uma sonoridade leve (leiam em voz alta, pausadamente), uma fusão de flashes oníricos, uma tecitura melancólica. O olhar do eu poético passeia por lembranças dos seus mortos. Lembranças que viajam (des)ordenadamente “ Por campos de outrora/e pelos campos do meu sonho”, deixando o eu poético entre a fugacidade das lembranças e a saudade de nostálgicas imagens. Poema cuja concisão consegui atingir a etérea essência da saudade.
Belo poema!


Visitação

(Luciano Maia)



O meu olhar demorou
mas por fim entreabriu
o quadro emoldurado de luz e neblina
onde galopam os alazões
da longa e enluarada
noite dos meus mortos.
Por campos de outrora
e pelos campos do meu sonho
agora eles viajam
e regressam num instante
enquanto demoramos em sua falta.


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Gavetas Purificadas, de Betusko

Há quem considere a introdução e o fechamento de um poema a alma da coisa poética. Isso, obviamente, considerando a poesia moderna ou pós-moderna (termozinho complicado e vazio esse...). Na poesia clássica, as regras formais tinham muito mais importância no todo do poema. No poema abaixo, há pelo menos duas interpretações (dentro de uma perspectiva de análise mais moderna): (1ª) introdução e fechamento estão intimamente ligados um ou ao outro, mesmo que isso nem sempre possa ser percebido numa leitura inicial. “Hoje acordei justiceiro/com fome de arrumar as gavetas” abre as portas para todo o desenvolvimento descritivo/explicativo que vai fuçando os baús da casa, os armários, as gavetas e a própria vida emocional do eu poético. Mas por que essa sede de justiça? Isso só é compreendido ao final, nos últimos versos, quando entra em cena (no texto) Maria, a foto rasgada e sobretudo a frase mentirosa contida no verso da foto (“te amarei por toda a minha vida…”). É como se o eu poético precisasse purificar as coisas e a si mesmo, fazer justiça consigo mesmo ao apagar (ou pelo menos tentar) as coisas que adornam o contexto da existência de Maria. Para tanto, o longo inventário de coisas e sentimentos que devem sair de cena (da memória). São coisas que precisam ser abandonadas pela fala ou pela escrita, para deixarem de ser partes de um quadro fantasmagórico a assombrar o inventariante. (2ª) Maria talvez seja apenas mais um objeto a ser jogado fora das gavetas da memória do eu poético, para uma renovação ampla e irrestrita desse eu. Ainda assim, introdução e fechamento continuam entranhados, agora como olhares que se cruzam e se completam ao acaso. Bom ver poemas com uma estrutura bem posta, intencionalmente ou não.



Gavetas Purificadas

(Betusko)



Hoje acordei justiceiro
com fome de arrumar as gavetas
que vivem sempre abarrotadas
de coisas sem valia, sem perdão
cujo prazo de validade ficou para trás,
sendo assim condenadas
ao cesto implacável da cremação,

são fotos sem enquadramento
sem pé nem cabeça,
são porcas e parafusos enferrujados
que habitam, há anos, em um tupperware lacrado,
são contas e mais contas pagas e amareladas
cansadas de esperar pela audiência
de um único credor desconfiado,
são receituários antigos de médicos tão velhos
que já não curam a urticária, quanto mais a ansiedade,
são receitas de bacalhau que nunca viram a luz do sol
muito menos o fio de azeite dançando
sobre suas postas imaginárias,
são baterias semi descarregadas
atracadas com aparelhos de celulares pré-históricos
com rabichos e rabichos de carregadores
que por não se encaixarem aos demais equipamentos
tornaram-se casmurros e solitários,
são calças e blusas magras de marré de si
que só fazem lembrar de um passado Zero Cal
longe das bombásticas tentações achocolatadas,
são emoções baratas que já não surtem efeito
neste velho coração bandoleiro
cansado de películas antigas em VHS,
são superstições tão bobas, de um garoto suburbano
que não fazem frente
ao menor dos sintomas de um TOC,
são roupas vermelhas e brancas
de uma era em que se acreditava em Papai Noel
e em políticos politicamente corretos
que não tripudiavam sobre caseiros ingênuos,
ou secretárias sagradas,
nem roubavam merendas escolares;
são esperanças envelhecidas e malsãs
de um dia ganhar o mundo à revelia
fincando uma bandeira em cada canto do planeta

e tem também a gaveta dos projetos esquecidos
dos anseios desnecessários
das canções abandonadas e sem festivais
e, sobretudo, o último compartimento em desalinho
aquele dos amores acontecidos
do qual, sem antes titubear,
rasguei uma foto de Maria
cujo verso mentia em letras garrafais:
te amarei por toda a minha vida…


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

domingo, 15 de janeiro de 2012

as coisas elementares, de António José Cravo

Poema concebido sob e sobre minúcias, onde a memória das pequenas coisas agiganta-as e, não obstante a delicadeza de cada verso, um grito agudo ecoa do eu poético. Este fala de coisas elementares, simples, cotidianas. E dessas miúdas coisas elementares surgem poderosas imagens que só as palavras podem produzir: “um seixo rolado/guardando o tempo/dentro de si/um torrão de terra/grávido de uma semente”, onde, da solidez, pode nascer a frágil semente do amanhã ou da própria vida, apesar de haver “as lágrimas/rios de salgados/nos leitos dos rostos abandonados”. A voz ecoa com ternura das palavras de um eu que se diz “cansado de comer silêncio/e ler poemas de amor/com tanto desamor". Belo, belíssimo poema! (O autor é português.)

Menção deve ser feita ao blog onde o poema e o vídeo acima foram localizados. Trata-se do
http://portuguesapoesia.blogspot.com/, um blog rico e inovador para os amantes da poesia.



as coisas elementares

(António José Cravo)


falo das coisas mais
elementares
o sino da igreja
onde um galo não canta
um seixo rolado
guardando o tempo
dentro de si
um torrão de terra
grávido de uma semente
mais elementares ainda
os sorrisos presos nos lábios
das crianças tristes
as lágrimas
rios de salgados
nos leitos dos rostos abandonados
nos lares/depósitos
falo porque
estou cansado de comer silêncio
e ler poemas de amor
com tanto desamor
a caminhar por aí
as coisas mais elementares
são as que deviam ocupar
o ventre das palavras por parir










(Obs.: o autor "obrigou" a postagem do texto do poema acima.)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Morre-se de solidão no meu país, de Piedade Araújo Sol

A solidão e o tempo. Entre eles, ou dentro deles, a morte lenta. A melancolia como pano de fundo. Um e outro, a solidão e o tempo, escurecem os cantos das paredes, das casas, dos dias e da alma de um país (e das pessoas, por que não?). Até a Natureza, tão bela e rica, abate-se frente ao abraço da solidão e ao esquecimento do tempo. Na primeira estrofe, a solidão se espalha nas coisas e nos dias. Na terceira, a esperança passa pelas estações do ano como uma possibilidade. Ao fim, uma antítese do drama existencial: “morre-se devagar” e “depressa tudo se esquece”. Poema com ideias bem trabalhadas e tom entristecido. A autora é portuguesa. Seu blog é http://www.olharemtonsdemaresia.blogspot.com/ .



Morre-se de solidão no meu país

(Piedade Araújo Sol)



A solidão prolongada
Em forma de sombras
Neutras
Esbatidas
Infiltrada nas paredes
das casas fechadas – com gente dentro
e a noite a fechar o dia mais uma vez
duas vezes – muitas vezes

e morre-se devagar no meu país

as árvores no Outono estão nuas – esquálidas
no Inverno o frio magoa os ossos e a alma
mas talvez os melros cantem antes da próxima primavera
se o verão chegar todos os dias
no sol de uma tigela de sopa fraterna

morre-se devagar no meu país

e depressa tudo se esquece


(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O Tempo, de Agamenon Almeida

O tempo fugidio. O tempo que entristece a todos os rostos. Parece inesgotável essa capacidade do ser humano de sempre se abismar (e se desgostar) com as marcas do tempo na sua breve existência. Tanto já se escreveu sobre o tempo, mas parece ter sempre algo novo, alguma maneira nova nova de exprimir a mesma dor. O tempo, o amor, o exílio, o destino e a morte são temas eternos na aventura humana de nascer, viver e morrer. São os cinco martelos existenciais por excelência. No poema, depois de uma sequencia de desgostos, tem-se a impressão de que ainda há esperança, pois “Fingimos que temos o tempo na mão”. Mas o tempo é impiedoso. Bastaria, pois. Então vem a morte. A martelada existencial muda apenas de mão.


O Tempo
(Agamenon Almeida)


O tempo passa e passa tão depressa
Que nem sempre é possível acompanhar
Fingimos que temos o tempo na mão
E não vemos, aflitos, o tempo passar

Mas quando a gente se olha no espelho
E não mais reconhece o próprio rosto
Desfigurado que foi pelo tempo
Só se sente um amargo desgosto

Olhado pra traz, quase nada foi feito
E não tem mais jeito do tempo voltar
Então só se chora o tempo perdido
Por não ser possível mais nada mudar

Então se agarra ao que resta da vida
Achando que agora tudo pode fazer
Que às vezes se esquece que lá na esquina
Espreita-nos a morte, pondo tudo a perder.



(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema.)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Sarita, de Macabéa de La Mancha

O poema passeia por necessidades do eu poético até as últimas duas estrofes, quando o objetivo (subjetivo?) se apresenta. Avulsa, vadia, se vestia e tinha medo. Os sentimentos caminham do levemente indefinido/indeterminado (avulsa) ao dolorosamente entranhado (o medo). Um eu em conflito com os sentimentos (“Do amor, expulsa” e “Em tantas bocas, confusa”), mas que se expõe ao mundo e ao amor, pois precisa enfrentar o medo. E o corpo é o instrumento. Tanto para o amor quanto para encontrar a própria alma.
Sim, não se pode deixar passar a criatividade do pseudônimo da autora, Macabéa de La Mancha.
Belos, poema e pseudônimo!


Sarita
(Macabéa de La Mancha)


Preciso dizer que andei avulsa
Que andei tardia
Pelas noites que ia
Do amor, expulsa.

Preciso dizer que andei vadia
Que me causei repulsa
Pelos beijos que daria
Em tantas bocas, confusa.

Preciso dizer que me vestia
Do vestido mais curto
E pintava os olhos de preto

Pra não dizer que tinha medo
De ser pelo amor negada
E permanecer do amor, segredo.

Para tentar encontrar minha alma
Em um corpo que não era o meu.


(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

zabelê, de Lau Siqueira

A tentativa de ler o poema sem lembrar de João Cabral de Melo Neto e de Manoel de Barros parece fadada ao fracasso. Mas há mais, muito mais do que essas referências conscientes ou inconscientes, explícitas ou implícitas. Há uma dicção própria ao longo do poema, onde cada estrofe parece acender e apagar pequenas luzes nos pensamentos do leitor. Não são verdades reconhecidas, nem mentiras deslavadas. São fragmentos constatativos e descritivos: a rachadura de eixo, o incêndio das pálpebras, o insano vapor do instante, o sumidouro da espuma e o olhar cariri. Bela construção!


zabelê
(Lau Siqueira)


no sol cabralizante
do verso existe um elo
e uma rachadura de eixo

( texto e contexto
no incêndio das
pálpebras )

linguagem rupestre dum
rio que percorre a palavra
no insano vapor do instante

instinto e lucidez de pedra
no sumidouro da espuma

pluma na fenda da loca e
antropologia num reisado
de olhar cariri

(...e a certeza dos poros
vai bebendo nossos
óleos...)


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

Outras Confidências, de Flávio Otávio Ferreira

Poema que remete à solidão drummoniana ou àquilo que Antonio Houaiss chamou de um estar-no mundo que se faz rejeitar-o-mundo para, implicitamente, propor um-novo-mundo. O universo solitário do eu poético parece ter sido uma escolha consciente, mas como sobreviver se “a tristeza aqui dentro instalada/é amálgama de ferro corroído”? Apenas na escrita, no fazer poético, esse eu pode continuar a existir e a ter vida. Só assim ele pode se encerrar “em outra pauta/escrita apenas da alegria que em falta”. Só assim ele pode, inclusive, ironizar o próprio Drummond, funcionário público e fazendeiro. Muito bom o poema, sobretudo para quem já leu um pouco da obra poética drummoniana.


Outras Confidências
(Flávio Otávio Ferreira)



Não sou funcionário público,
Tampouco tive gado, ouro e fazenda.
Na parede, nenhum retrato
Resgata-me da profusão sentimental
A inflar saudades em meu peito.

Vivo submerso em sonhos e retalhos,
histórias e improvisos;
a tristeza aqui dentro instalada
é amálgama de ferro corroído.

Se eu trouxesse todas as prendas exemplares,
Todas as notas de canções já esquecidas
Transmutava essa tristeza descerrada
Em completa explosão de alegria,

Mas, por hábito, abracei o sofrimento,
isolado mergulhando em noites brancas,
de outros tempos da vida erigi lembranças
que se esvaem simplesmente em contradança

De tão porosa a alma está incomunicável,
ferido o orgulho
maquiado qual ferrugem
de tanta mágoa
me encerro em outra pauta
escrita apenas da alegria que em falta.


(Obs.: o autor autorizou a postagem do poema acima.)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ofereço saudades, de Tahyane Rangel

Poema curto, mas incisivamente delicado. Clareza, ironia e criatividade. Conjugação nem sempre tão fácil no fazer poético. Imagens belíssimas (“baú com minhas saudades”, “álbum de sonhos”) em tão poucos versos. Poema sem dor, lamento ou tristeza.



Ofereço saudades
(Tahyane Rangel)




Ofereço a quem interessar possa

um baú com minhas saudades,

Repleto de momentos felizes,

da infância e da mocidade.

Todas em bom estado para uso imediato.

Favor apresentar-se somente aqueles

que saibam com elas construir

um álbum de sonhos.




(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

estrelas da noite, de Adriana Godoy

Belo retrato dessas estrelas da noite. Triste e cômico. Poema que se lê rápido e sem pausas. A caracterização das putas é ampla e diversificada ( piranhas, vadias, maquiadas, belas, fogosas, fêmeas, machos travestidos, andrógenos, bichos, bichas, seres felizes, morcegos iluminados, vampiros imortais, ratos). Despertam sentimentos e reações diversos (atormentar, seduzir, machucar, amaldiçoar). Humanas, apenas humanas. É essa a impressão que fica das putas.


estrelas da noite
(Adriana Godoy)


passavam sempre ali as putas
piranhas vadias maquiadas
pisavam com passos leves
purpurinas meninas mulheres

passavam ali e atormentavam
os senhores as senhoras
pudicos em seus lares e dogmas
passavam sim e eram belas e fogosas

a noite descia e trazia consigo
as estrelas- vênus das ruas
brilhavam e iluminavam
a vida e os desejos dos homens

não se sabia se eram fêmeas machos
travestidos andrógenos bichos bichas
não se sabia se sonhavam se amavam
se gozavam se seduziam se machucavam

eram estranhos seres felizes
donos da madrugada dos mundanos
dos menestréis mendigos magistrados
dos miseráveis dos mentecaptos dos mortos-vivos

na sombra da noite eram morcegos iluminados
à procura de sangue
dos inocentes ou dos culpados
vampiros imortais em seus desvãos de sedução

quando a noite se ia
e não se via mais a lua
as estrelas das noites
senhoras das ruas e dos bares
maldição de todos os lares
desapareciam nos bueiros da cidade





(Obs.: a autora autorizou a postagem do poema acima.)

domingo, 1 de janeiro de 2012

Vídeos poéticos

Clarice Lispector - Já Escondi Um Amor




Carlos Drummond de Andrade - Procura da Poesia





Cora Coralina – Saber viver





Vinícius de Moraes - Soneto da Fidelidade - por Paulo Autran